Discos para descobrir em casa – ‘Orlando Silva canta músicas de Ary Barroso’, Orlando Silva, 1953

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♪ DISCOS PARA DESCOBRIR EM CASA – Orlando Silva canta músicas de Ary Barroso, Orlando Silva, 1953

♪ Formato lançado em 1951 no mercado fonográfico do Brasil, o LP de 10 polegadas – disco de vinil com espaço para oito faixas em dois lados – possibilitou a idealização de álbuns conceituais. Antes de ceder lugar ao LP de 12 polegadas, a partir de 1956, esse primeiro molde de LP conviveu nas lojas com os seminais singles de 78 rotações por minutos.

Foi em LP de 10 polegadas editado em 1953 pela gravadora Musidisc que a voz referencial do cantor carioca Orlando Garcia da Silva (3 de outubro de 1915 – 7 de agosto de 1978) se uniu ao cancioneiro igualmente emblemático do compositor mineiro Ary Evangelista Barroso (7 de novembro de 1903 – 9 de fevereiro de 1964), cuja obra é um dos pilares da música brasileira construída dos anos 1930 aos anos 1950 antes da ruptura estética provocada pela revolução da Bossa Nova.

Primeiro ídolo de massa produzido no Brasil dos anos 1930 pela indústria do disco e pela máquina do rádio, Orlando Silva já estava distante do auge da voz e da popularidade quando entrou em estúdio em 1953 para gravar, com arranjos e com a orquestra do maestro paulistano Leo Peracchi (1911 – 1993), oito músicas de Ary Barroso – e também oito músicas do compositor carioca Custódio Mesquita (1910 – 1945) para dar origem a um segundo LP de 10 polegadas editado pela Musidisc naquele ano de 1953.

Mesmo assim, o artista ainda era, se não um senhor cantor, pelo menos um grande cantor a ser respeitado, nem que fosse pela história pregressa.

Orlando Silva tinha sido “o cantor das multidões” que impressionara ninguém menos do que João Gilberto (1931 – 2019) com o moderno fraseado vocal e com divisões sagazes que chamaram a atenção do futuro criador da bossa nova e que, mais tarde, também encantariam um discípulo insuspeito chamado Roberto Carlos, futuro rei da juventude brasileira dos anos 1960.

No período que foi de 1935 a 1942, Orlando Silva conseguiu ofuscar a fama de outros grandes cantores de multidões como o conterrâneo carioca que lhe ajudara no início da carreira, Francisco Alves (1898 – 1952), o “rei da voz”, calado em fatal acidente de carro, um ano antes de Orlando abordar as oito músicas de Ary Barroso nesse LP de 10 polegadas que pode ser considerado o primeiro álbum do cantor.

Dono de potente voz de longo alcance, propagada pelo rádio a partir de 1934, estreada em disco em 1935 e moldada para repertório de tom seresteiro, Orlando Silva saiu do subúrbio carioca para a glória nacional de forma quase instantânea, a ponto de ter se tornado ídolo já na segunda metade dos anos 1930.

Em 1953, a discografia do cantor já incluía gravações originais de músicas emblemáticas como o choro-canção Carinhoso (Pixinguinha, 1917, com a letra posterior de João de Barro, 1937) e a valsa Lábios que beijei (J. Cascata e Leonel Azevedo, 1937).

Só que as multidões se afastaram do cantor ao longo dos anos 1940 e Orlando Silva amargou um dos declínios mais dolorosos (literal e metaforicamente) da história da música brasileira.

A dor literal era procedente da deterioração dos ossos que embasam as raízes dos dentes, problema que obrigou o artista a extrair vários dentes e a usar doses cavalares de morfina, droga que já usara para amenizar o sofrimento decorrente da amputação de parte do pé, consequência de grave acidente de bonde sofrido em 1932, dois anos antes de o cantor iniciar a escalada fulminante para o sucesso.

A morfina corroeu a voz privilegiada do cantor – de emissão já prejudicada pela extração dos dentes – e essa perda (parcial) do viço vocal como intérprete provocou dores tão ou mais profundas na alma de Orlando Silva.

Ouvidas em 2020 sem esse contexto trágico, as oito interpretações alinhadas no LP de dez polegadas Orlando Silva canta músicas de Ary Barroso flagram um cantor ainda dono do dom, mesmo que soe como um cantor menos arrebatador no confronto inevitável com o intérprete da fase áurea.

Na primeira das oito faixas do disco, gravada com andamento lento e com contracantos proeminentes, Orlando Silva revolveu Terra seca (1943) – samba de caráter social, lançado há então dez anos pelo conjunto vocal Quatro Ases e um Coringa – e, na sequência, deu voz ao melodramático e moralista samba-canção Trapo de gente (1953), também gravado naquele mesmo pela cantora Linda Batista (1919 – 1988).

Apresentada em disco na voz de Silvio Caldas (1908 – 1998), outro cantor imponente da era do rádio, a composição Por causa desta cabocla (Ary Barroso e Luiz Peixoto, 1935) exalou lirismo seresteiro e ruralista no registro tradicionalista de Orlando Silva.

Também lançados por Caldas, ambos em 1935, os sambas-canção Inquietação e Tu mostraram que o cantor tinha pleno entendimento do significado poético dos versos que interpretava com boa combinação de técnica e sentimento.

Tu, em especial, reiterou no LP a vocação de Orlando Silva para dar voz a temas líricos, de romantismo derramado – habilidade que deveria ter convencido o maestro Leo Peracchi a dispensar o coro do arranjo demasiadamente opulento, criado à moda grandiloquente da época. Erro que, na gravação de Orlando, também empanou ligeiramente o brilho de outra pérola então recente de Ary Barroso no terreno do samba-canção, Risque (1952), composição apresentada no ano anterior na voz da cantora Aurora Miranda (1915 – 2005).

Muito presente no disco, o coro se ajustou com menor estranheza ao samba Faceira. Composição lançada em 1931 na voz do recorrente Silvio Caldas, Faceira foi a música mais antiga da boa seleção de repertório deste álbum Orlando Silva canta músicas de Ary Barroso.

E que músicas! O samba-canção Caco velho (1934), apresentado em disco há então 19 anos na voz da esquecida cantora gaúcha Elisa Coelho (1909 – 2001), corroborou o acerto do reencontro da obra refinada de Ary Barroso com o canto de Orlando Silva.

A voz desse grande cantor – mesmo ofuscada por intérpretes sucessores como Nelson Gonçalves (1919 – 1998) e por movimentos musicais como a Bossa Nova, a Jovem Guarda e a Tropicália – somente se calaria definitivamente em agosto de 1978, quando o nome de Orlando Garcia da Silva já estava entronizado na história da música brasileira por ter arrastado multidões embevecidas entre 1935 e 1942.

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