Capa do álbum 'Tango', de Vitor Ramil — Foto: Arte de Carlos Scliar

♪ DISCOS PARA DESCOBRIR EM CASA – Tango, Vitor Ramil, 1987

♪ Estudante de violão clássico desde os 11 anos e compositor desde os 12, o precoce Vitor Ramil tinha meros 18 anos quando teve a primeira música gravada – no caso, na voz cristalina de Zizi Possi. Música que Ramil compusera aos 14 anos.

Ao registrar Minas de prata no álbum Zizi Possi, lançado em 1980, a cantora apresentou ao Brasil este compositor gerado no sul, mais especificamente de Pelotas (RS), cidade gaúcha onde Vitor Hugo Alves Ramil nascera em 7 de abril de 1962.

Pelotas, no universo musical de Ramil, se tornou Satolep (anagrama do nome da cidade de natal), fonte de inspiração para a criação da Estética do frio, teoria formalizada em ensaio de 1992 e mola propulsora de grande parte da discografia do artista por apresentar obra calcada no universo do sul do Brasil sem se apoiar na visão estereotipada do gaúcho no eixo etnocentrista do sudeste, onde Ramil morou, na cidade do Rio de Janeiro (RJ), de 1986 a 1992.

Nessa discografia inteiramente autoral composta por 11 álbuns (o 12º, Avenida Angélica, já está idealizado com músicas compostas sobre versos da poeta gaúcha Angélica Freitas, mas permanece inédito em 2020, à espera de oportunidade para ser gravado), Tango foi o terceiro disco deste cantor, compositor e músico de assinatura singular.

Lançado pela gravadora EMI em 1987 no formato de LP, com capa que expôs Ramil no traço do artista plástico gaúcho Carlos Scliar, o álbum Tango foi editado em CD em 1996 em tiragem logo esgotada. Fora de catálogo há anos e fora das plataformas de streaming, Tango se tornou disco tão raro quanto interessante. Tango sucedeu A paixão de V segundo ele próprio (1984), álbum de tom experimental lançado três anos antes.

Na época, Vitor já era percebido como o irmão mais cool da família Ramil, clã que fazia sucesso nacional sem negar as origens gaúchas, mas sem se render à visão folclórica da música do sul do Brasil pela ótica de cariocas e paulistas.

É que, além de Vitor, dois irmãos do artista – ambos egressos do grupo Almôndegas, fundado na década de 1970 – tinham formado a bem-sucedida dupla Kleiton & Kledir, cujo primeiro álbum tinha sido lançado no mesmo ano de 1980 em que Zizi apresentou Vitor ao universo pop brasileiro.

No rastro da gravação por Zizi de Minas de prata, parceria de Vitor Ramil com Arthur Nestrovski (com quem o cantor montara o primeiro show solo em 1979, Vitor Ramil e Corpo de baile, atração badalada na cena de Pelotas), o artista começou a preparar o primeiro álbum, Estrela, estrela, lançado em 1981.

Zizi deu novo aval a Vitor ao participar da gravação de música, Um e dois (Vitor Ramil, 1981), desse álbum de estreia. Já Gal Costa – cantora que vivia pico de popularidade na época – incluiu a música-título Estrela, estrela no repertório do álbum Fantasia (1981).

Ainda assim, fora do sul do Brasil, Vitor Ramil jamais se tornou uma estrela popular da música do Brasil como os irmãos Kleiton e Kledir. Em contrapartida, Vitor sempre foi o artista mais cultuado da família.

Álbum gravado e mixado entre novembro de 1986 e janeiro de 1987, com produção musical de João Augusto, Tango justificou o culto a Vitor Ramil ao apresentar repertório composto por sete então inéditas músicas autorais (seis assinadas somente pelo artista) e por versão em português – também escrita pelo próprio Vitor – de Joey (1976).

Joey era épica composição de Bob Dylan em parceria com Jacques Levy (1935 – 2004), lançada pelo bardo norte-americano no álbum Desire (1976), a cujo repertório, aliás, Vitor voltaria 30 anos depois ao versionar outra música desse disco de 1976, Sara, transformada em Ana no disco Campos neutrais (2017).

Intitulada Joquim (assim mesmo, Joquim, sem o presumível “a”) e baseada na vida de Joaquim Fonseca, a versão de Dylan por Vitor Ramil em Tango flagrou o artista gaúcho mergulhado no mar de ideias do bardo, à bordo da “nau da loucura” citada poeticamente no refrão dessa saga guerrilheira ambientada por Ramil nas fronteiras imaginárias de Satolep.

Joquim, a faixa, totalizou oito minutos e meio e se afinou, no universo do disco, com Loucos de cara, obra-prima da safra autoral apresentada pelo artista no álbum Tango. Parceria de Vitor com o irmão Kleiton Ramil que ganharia excelente registro fonográfico da cantora Lúcia Helena em 1989 feito com adesão do próprio Vitor, Loucos de cara sugeriu liberdade, em sintonia com a melodia e a letra sem amarras.

Álbum criado sem fronteiras rítmicas, Tango nunca foi um disco de tango, como sugeria o título que assustou os diretores de marketing da gravadora EMI. E nem seria estranho se tivesse sido, pois Vitor sempre enfatizou na própria obra a influência da cultura da América Platina – a região formada por Argentina, Paraguai e Uruguai – na música do sul do Brasil.

Essa influência soou bem diluída em Tango, álbum que evoluiu, ao longo de 34 minutos, com sonoridade de sotaque mais universal por conta dos arranjos criados por Ramil com a banda formada por (grandes) músicos como Ary Sperling (teclados e programações), Carlos Bala (bateria), Gilson Peranzzetta (teclados), Hélio Delmiro (guitarra), Leo Gandelman (sax), Marcio Montarroyos (1948 – 2007) (trompete), Nico Assumpção (1954 – 2001) (baixo) e o próprio Vitor Ramil (no violão e/ou no piano).

Tal sonoridade embalou músicas como Sapatos em Copacabana (composição em que a poética imagética sobressaiu sobre a melodia) e Mais um dia (de clima quente e jazzy). Virda flagrou o compositor à vontade para desafiar a gramática em favor da poesia.

Já Passageiro sinalizou que Vitor Ramil também tinha sido levado a embarcar no voo tecnopop que planava na década de 1980 – opção estética nem sempre acertada para a obra de compositor de letras escritas com fortes imagens poéticas.

Tema instrumental do disco, Nino Rota no sobrado foi apresentado com trecho incidental de Tango da independência (Vitor Ramil e Paulo Seben), música então inédita que Ramil somente registraria na íntegra 26 depois no álbum retrospectivo Foi no mês que vem (2013).

E veio então, no fim do álbum Tango, a canção Loucos de cara, aliciante exemplo da delirante veia poética deste inspirado cancionista do clã dos Ramil, família que continua crescendo e já pariu outra geração musical.

Desafiando a noção etnocentrista carioca de que gaúchos vivem longe demais das capitais, como denunciou outro pensador gaúcho, Vitor Ramil continua livre, sem amarras, sem nada a lhe prender na criação de obra fonográfica.

Após Tango, LP que surtiu pouco efeito comercial, essa obra foi desenvolvida por Vitor Ramil à margem do mercado em álbuns como À beça (1995) e Ramilonga – A estética do frio (1997), com coerência, sem jamais negar o talento precoce daquele compositor de então 18 anos apresentado ao Brasil na voz de Zizi Possi.

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