Neurocientista potiguar Miguel Nicolelis questiona em livro a inteligência artificial e seus efeitos sobre o cérebro humano

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Por Shin Suzuki, G1 — Desde que o ser humano se entusiasmou com a ideia de um futuro dominado pela tecnologia, uma pergunta vem sendo feita: quando o cérebro humano vai ser superado pela máquina?

O neurocientista Miguel Nicolelis defende em seu livro “O verdadeiro criador de tudo – Como o cérebro humano esculpiu o universo como nós o conhecemos” (editora Crítica) que o digital não reúne condições para reproduzir fielmente os processos mentais – nem de emular o poder humano de criação e inventividade. A inteligência, no entanto, corre o risco de ser moldada pelos algoritmos e se empobrecer.

Nicolelis explica que o sucesso dos sistemas digitais nos últimos 70 anos fez com que o analógico do funcionamento cerebral pareça algo inferior.

“Quando o cérebro realiza alguma coisa, ele realiza usando matéria orgânica. E esse é um conceito que desapareceu da nossa convivência diária. Nem tudo pode ser reduzido a um algoritmo digital. Ao contrário: a vasta maioria dos fenômenos naturais não pode. Por isso que previsão do tempo é tão incerta”, diz ao G1 o neurocientista, que leciona e lidera estudos na Universidade Duke, nos Estados Unidos.

Apesar da eficiência do digital em transmitir informação por meios de sequências de 0 e 1, o sistema analógico do cérebro dispõe de uma complexidade de processos que o eletrônico, segundo Nicolelis, é incapaz de emular.

“O digital é uma aproximação. Ele filtra impurezas. O nosso cérebro, por sua vez, está habituado a perceber as impurezas.”

No livro, o neurocientista critica duramente o que chama de adoração ao poderio tecnológico encampada pelos gigantes do Vale do Silício.

“Se criou quase um fetiche que devemos criar máquinas que substituam seres humanos. E isso tem uma conotação muito mais econômica: é a ideia de reduzir o custo que representa o trabalho humano para elevar o lucro ao infinito.”‘

O pesquisador argumenta em “O verdadeiro criador de tudo” que abstrações mentais – ideias e concepções que se espalham e moldam a sociedade humana, de religiões a sistemas econômicos – não necessariamente servem para nos beneficiar.

“A razão pela qual nós estamos nessa crise existencial tremenda é porque certas abstrações mentais como lucro e dinheiro se tornaram mais importantes do que instinto de sobrevivência. Estamos dispostos a destruir o planeta, a escravizar as pessoas, a obrigar as pessoas a terem vidas miseráveis sem o mínimo para o sustento ou para sua felicidade.”

“O cérebro é um criador de universos, ele cria bolhas como religião, mitos, ideologias políticas… times de futebol. Ele é muito propenso a acreditar nessas abstrações humanas e sincronizar sua própria mente com as de outras pessoas que pensam como ele.”

Ele afirma que essa sincronização entre pensamentos semelhantes vem ocorrendo em um ambiente de declínio da visão crítica do mundo:

“Por exemplo, a pessoa se junta a um culto porque de repente ela se sincroniza com aquela visão de mundo. E a mente dela se fecha para qualquer pensamento racional e crítico. Ou uma pessoa vota em alguém porque o cara grita ou porque o cara é truculento. As pessoas começam a usar valores completamente periféricos para tomar suas decisões”, diz.

Esses agrupamentos de cabeças que pensam de forma parecida são chamados por Nicolelis no livro de “brainets” (redes de cérebro). Ele enfatiza que não representa apenas ameaça: muito da evolução humana se deve a essas redes que transmitiram conhecimento e informação através de gerações: cultura e ciência.

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“As brainets podem servir para coisas boas. É nossa missão identificar quais são as ruins. Foi por isso que eu escrevi esse livro, para tirar a neurociência do laboratório e mostrar porque a mente humana é o centro do nosso universo. É a responsável por todos os processos: tanto os que foram bem-sucedidos quanto os que acabaram em tragédias.”

Preocupação com o cérebro futuro

Nicolelis afirma ser uma grande ironia do destino que o poder dessas “brainets”, com abstrações mentais sedutoras, pode rebaixar as capacidades mentais do ser humano. A imersão digital profunda, com muitas telas e internet, está mudando o cérebro dos mais jovens e levando a distúrbios cognitivos e emotivos, diz ele.

Em “O verdadeiro criador de tudo”, Nicolelis se junta a um grupo de pensadores que cada vez mais expressa receios sobre arquiteturas digitais que ativam circuitos do prazer e da recompensa no cérebro – e do vício, o que levaria a deterioração da saúde mental (pesquisas sobre o tema apresentam conclusões divergentes).

Além disso, decisões tomadas cada vez mais por algoritmos e outros processos facilitados por computadores levam Nicolelis a temer uma espécie de distrofia das capacidades potenciais do cérebro humano.

“Pela primeira vez na história uma geração aparentemente tem um QI abaixo de seus pais. A neurociência está mostrando que isso está afetando o cérebro, que é uma grande camaleão. Se o cérebro vê que a lógica do mundo ao redor está mudando, se as contingências estão mudando, ele se adapta.”

A geração alfa – nascida a partir de 2010 e formada pelos filhos dos millennials – é considerada a primeira geração para qual muitos aspectos do mundo analógico parecem bem distantes de realidade.

O neurocientista opina que “tecnologia virou religião” e que foi conferida a ela um poder divino, de resolver todos os nossos problemas. Mas afirma que não tem nada de fobia em relação aos avanços trazidos pelas máquinas.

“Trabalho com tecnologia há 38 anos, passei a minha carreira inteira usando tecnologias de ponta para estudar o cérebro ou sistemas digitais. Mas isso não quer dizer que possamos ir completamente às cegas rumo a algo que pode alterar a própria essência de como funcionamos.”

Foto: Divulgação.

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