Em decisão inédita, UE aprova pacote trilionário para reconstrução pós-coronavírus

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Bloco fará empréstimo comum de R$ 4,6 trilhões; discussão sobre como repartir recursos durou 4 dias

Por Folha de SP — Após quatro dias e quatro noites de negociações, líderes dos 27 países da União Europeia chegaram na madrugada desta terça (21) a um consenso sobre o orçamento comum dos próximos sete anos (MFF) e o programa de reconstrução da economia pós-coronavírus.

Ao aprovar o pacote de mais de 1,8 trilhão de euros (R$ 11 trilhões, mais que o PIB anual do Brasil), o Conselho Europeu mobilizou recursos inéditos para um projeto geopolítico e econômico de transformar o bloco em liderança na economia verde e em digitalização.

Os países também fortaleceram o papel da Comissão Europeia (Poder Executivo da UE), ao autorizar pela primeira vez na história que ela faça um empréstimo em nome de seus membros para os investimentos na retomada, no valor de 750 bilhões de euros (R$ 4,6 trilhões, valor maior que o PIB anual da Suíça ou da Argentina).

Como tudo o que envolve muito dinheiro, interesses diversos (ou até contraditórios) e a oportunidade política de ocupar o palco da mídia, foi uma negociação cheia de declarações acaloradas e farpas explícitas.

O principal foco de discórdia era como distribuir esse dinheiro, que será levantado no mercado financeiro internacional com a garantia de todos e terá que ser devolvido também pela contribuição comum, em 30 anos a partir de 2028.

A divisão inicial, que destinava 500 bilhões de euros (dois terços do total) para programas a fundo perdido, era inadmissível pelos chamados Frugais (Holanda, Dinamarca, Suécia e Áustria, com algum apoio da Finlândia). Sob liderança do premiê holandês, Mark Rutte, eles veem as doações como “prêmios” a países que, segundo eles, controlam mal seus cofres públicos.

No novo compromisso, essa parcela caiu para 52% do total, ou 390 bilhões de euros, uma vitória para o “grupo dos países mais mesquinhos e egoístas”, nas palavras do premiê polonês, Mateusz Morawiecki.

Os 360 bilhões de euros restantes ficarão disponíveis para empréstimos a países que não conseguirem juros menores no mercado internacional (11 dos 27 membros, segundo cálculos da Comissão).

No jantar de domingo, quando as negociações pareciam não avançar após três dias, o premiê italiano, Giuseppe Conte, também se voltou contra Mark Rutte: “Você pode ser herói na sua casa por mais alguns dias, mas corre o risco de ser responsabilizado por decepcionar a Europa”.

A Itália ocupava posição central nas preocupações políticas da Comissão Europeia, que considerava fundamental um pacote de reconstrução que não dificultasse a vida dos países do sul.

Abalada já antes da pandemia, a economia italiana foi uma das mais debilitadas pelo coronavírus, que matou mais de 35 mil pessoas no país (1 em cada 1.724 habitantes).

O PIB do país deve encolher 11% neste ano (acima da média do bloco, de 8%), e a recuperação prevista para 2021 é de pouco mais da metade disso (6%), segundo estimativas da UE divulgadas há duas semanas.

Num cenário visto como caldo de cultura ideal para populistas que defendem um “italexit” (a saída do país do bloco, a exemplo do que ocorreu com o Reino Unido no Brexit), um fracasso da União Europeia em socorrer seus membros nesta crise seria pólvora no discurso já explosivo.

O pacote final trará alívio significativo para o governo italiano: mais de 82 bilhões de euros em doações e a possibilidade de emprestar quase 130 bilhões de euros. “Este acordo foi uma prova da capacidade da UE de agir”, disse a presidente da Comissão, Ursula von der Leyen, na madrugada de terça;

Outra discussão política que atrasou o desfecho foi sobre como usar os recursos comuns para pressionar países que têm adotado ações consideradas antidemocráticas e em desacordo com as regras da UE em áreas como liberdade de imprensa e do judiciário e políticas de imigração. É o caso da Hungria e da Polônia, por exemplo.

A Holanda queria incluir um mecanismo para barrar repasses se houvesse dúvidas sobre sua governança, o que o premiê húngaro, Viktor Orbán, chamou de “táticas comunistas”.

“Quando o regime comunista decidiu nos atacar [a Hungria foi satélite da União Soviética até 1991], usaram termos jurídicos vagos como os da proposta do holandês”, afirmou Orbán, referindo-se a Rutte.

Como a decisão do Conselho Europeu tinha que ser por unanimidade, o húngaro ameaçava barrar todo o pacote se o texto permitisse “intervenção em seus assuntos internos”. No final, sobraram referências vagas à importância do Estado de Direito.

Foto: AFP.

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